O QUE PODEMOS APRENDER COM A
HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO?

(Publicado em 04/09/2019)





Na primeira página do livro deveria estar escrito, com letras bem grandes: "Antes de entrar, liberte-se de todo e qualquer anacronismo. Não faça qualquer julgamento dos personagens baseado em valores do século XXI. O livro tratará de coisas que aconteceram há quase 600 anos. Os fatos ocorreram nos séculos XV, XVI e XVII (entre 1444 e 1695). Eram outros tempos. Os padrões morais eram outros. O que era aceito como razoável pelas pessoas era diferente.



Dito isto, é importante também um outro alerta, agora aos militantes de toda ordem, que estão esfregando as mãos achando que vão encontrar no livro alimento para as suas próprias convições: os fatos são o que são. É a história. Não importa se vai agradar ou desagradar a igreja, os movimentos de direita, os movimentos negros, os portugueses, os angolanos, paulistas, cariocas ou baianos. É apenas a história. E precisa ser bem contada, ponto.



O livro de Laurentino Gomes consegue cumprir esse objetivo de forma magistral. Como em todos os outros trabalhos do autor, o texto flui límpido, rápido e envolvente. Quando o leitor se dá conta, já conhece os personagens pelos nomes, já identifica os lugares e relaciona as datas. A história é contada como se fosse uma reportagem de revista semanal. Mas a grande diferença é a profundidade e a chuva de dados e números (alguns inéditos na literatura brasileira).

Trata-se um trabalho de pesquisa que durou 6 anos, com viagens ao redor do mundo e a contribuição de muita gente. Uma superprodução da literatura de não ficção, com certeza. E irá se juntar aos outros livros do autor, no podium de Clássicos da Literatura do Brasil.

A escravidão é um tema sensível, especialmente para os afrodescendentes (como eu) que sofreram e sofrem as consequências explícitas ou veladas daquele trágico período. Sem uma boa explicação é muito difícil entender o que aconteceu e por que aquelas coisas aconteceram.

O livro tem momentos tensos em que o relato é chocante e apresenta o que há de pior na natureza humana. Faz a gente lembrar do poema de Castro Alves: "Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!"

Mas não fica nisso. Vai além. Aborda a questão da maneira mais abrangente, usando a mesma técnica já utilizada pelo autor nos livros 1808, 1822 e 1889, que é o de falar do mesmo fato diversas vezes, adotando pontos de vista ou analisando circunstâncias diferentes. O resultado é um livro que dá ao leitor um certo conforto e, por incrível que pareça, certa esperança na humanidade.

Conhecer a história é fundamental. Entender o que aconteceu e por que aconteceu é crucial, especialmente em questões como a escravidão, que produziu tantas consequências para a sociedade brasileira. Porém, por mais tocante que sejam as memórias (e as cicatrizes ainda vivas). É preciso lucidez para fazer desse passado um futuro melhor. Nisso eu não tenho dúvidas de que esse livro contribui de forma incontestável.





PADILHA, Ênio. 2019



PS.1: Muito difícil escrever a resenha deste livro sem dar spoiler, o que é estranho, pois se trata de um livro de história. Mas existem muitas revelações ou abordagens que são surpreendentes e isso acontece em praticamente todo o livro. É só o que eu posso dizer.

PS.2: O livro termina com "requintes de crueldade". Nos últimos parágrafos, como se fosse o último capítulo de uma série de TV, o autor introduz o tema da próxima temporada, digo, do próximo livro da trilogia. A sensação do leitor é de abandono: "agora o que resta é esperar um ano até o lançamento do Volume II".




REFERÊNCIAS:
1) GOMES, Laurentino. ESCRAVIDÃO - do primeiro leilão de cativos em Portugal até morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. 480p.
2) ALVES, Castro. O NAVIO NEGREIRO. Biblioteca Virtual de Literatura – http://biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://biblio.com.br/conteudo/CastroAlves/navionegreiro.htm. Disponível em 03/09/2019







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