SOBREVIVI AO TRABALHO INFANTIL.
MAS NÃO FOI LEGAL.

(Publicado em 04/04/2020)



COMECEI A TRABALHAR COM 11 ANOS. Não recomendo. Não acho que isso tenha ajudado, de nenhuma maneira na minha formação. Tenho certeza de que aquilo não fez de mim uma pessoa melhor, nem mais honesta ou menos complicada.

Mas aconteceu comigo, como acontecia com quase todos os meninos da minha idade (e classe social, evidentemente). No bairro pobre onde eu morava (bairro Canta Galo, em Rio do Sul, SC) quase todos garotos de 11 ou 12 anos largavam a escola e iam trabalhar em alguma coisa pra ajudar em casa.





Em 1970 eu fazia a 5ª série no Henrique Fontes (que, na época, funcionava no prédio do Paulo Zimmermann, no centro de Rio do Sul). As aulas eram de tarde, de segunda a sábado. Mas de manhã eu, com 11 anos, e meu irmão mais velho, Carlos Alberto, com 12, já fazíamos limpeza (capinar, roçar, arrancar mato, remover entulhos...) em jardins e quintais nas casas de gente rica da cidade, geralmente as mesmas casas em que a minha mãe trabalhava fazendo faxinas, lavando e passando roupas.

A casa da Dona Celeste (mãe do seu Ivens) era a que a gente mais gostava, porque sempre, no meio do trabalho tinha uma hora do lanche. Ela fazia um café e um sanduíche que a gente comia com muito gosto. Mas tinha algumas casas que era só trabalho pesado, sem lanchinho nenhum.

Aquele ano de 1970 foi um ano muito duro para a nossa família. Éramos em sete irmãos e não havia dinheiro pra nada. Nunca tínhamos condições de comprar os materiais para as aulas. Os livros que a gente utilizava eram doados pela escola. Na época o governo não fornecia o material escolar nem os uniformes. Era tudo por conta dos pais dos alunos.

Assim, quando, depois de uns três meses de aula, os professores perceberam que a gente não teria mesmo como comprar os livros e cadernos, encontraram uma maneira de nos dar o material, livros e cadernos, tudo com o carimbo da escola (pra devolver no fim do ano). Hoje em dia não tem nada demais em receber o material escolar da escola, mas, naquela época, isso era uma humilhação danada.

Por isso, no final daquele ano de 1970, a gente não ficou chateado quando a minha mãe e meu pai decidiram que seria melhor que eu e meu irmão deixássemos a escola pra lá e fôssemos arranjar trabalho pra ganhar algum dinheiro e ajudar nas contas da casa.

Meu irmão, que era mais velho (e mais forte) logo conseguiu um emprego na Fundição Estrela. Eu bati pernas de porta em porta de muitas empresas da cidade pedindo emprego, até que arranjei o primeiro, na Marofrás, uma grande madeireira da região.

Meu trabalho era ajudar a carregar e descarregar tábuas de madeira em caminhões da empresa e depois fazer retoques nas falhas das peças (com pó de serragem misturado com cola branca) antes que fossem para a seção de beneficiamento. Era um trabalho muito pesado e eu era muito fraquinho. Era início do ano. Verão de rachar, com um calor insuportável. Eu não dava conta.

Por sorte, havia um carroceiro, o Seu Jorge, que trabalhava junto a várias madeireiras da região, recolhendo restos de madeira e revendendo como lenha em diversos lugares da cidade. Ele me ofereceu a vaga de ajudante. Eu deveria carregar e descarregar a carroça, tratar e encilhar os cavalos. Parecia melhor. Menos doloroso. E eu iria ganhar a mesma coisa. E assim foi.

Mais tarde descobri que havia uma vaga para trabalhar, nos sábados, como ajudante de lavação de carros num posto de gasolina que ficava no final da rua Coelho Neto (quase no pé da ponte Curt Hering, onde hoje funciona o Banco do Brasil). O trabalho no posto era bem duro. Para lavar os carros, por dentro e por fora eu passava o dia inteiro todo molhado e sujo. Mas, no final do dia ganhava o equivalente à metade do que eu ganhava na semana inteira trabalhando na carroça. E assim, com 12 anos eu não apenas já trabalhava. Eu tinha dois empregos!

O TRABALHO DE TODO SÁBADO lavando carros no posto de gasolina durou o ano inteiro. Mas outros empregos foram se alternando. Trabalhei um tempo embrulhando balas na Fábrica de Balas Eliane, que ficava bem no final da Rua Pedro Moreto, no bairro das Laranjeiras. Eu adorava aquele trabalho, por causa dos amigos que eu fiz por lá, gente que eu lembro o nome até hoje (João, Anita, Leila... pessoas sensacionais).

Eu morava no bairro Canta Galo e a fábrica de balas ficava no outro lado da cidade. O intervalo de almoço era de apenas uma hora e meia e eu não tinha uma bicicleta. Então não dava tempo para ir em casa almoçar. Por isso a mãe preparava uma marmita (na verdade uma panelinha de alumínio, com tampa, que ela embrulhava num pano de louça) e mandava o Edson ou a Enoína (um dos meus irmãos menores) levar até no meio do caminho. Eu caminhava a outra metade do trecho e a gente se encontrava numa pracinha que existia bem no meio da rua Sete de Setembro, mais ou menos na frente da Delegacia de Polícia, no local onde, mais tarde passou a funcionar uma unidade da APAE. Na época era uma pracinha com um parquinho infantil (parecido com este aí da foto). Eu almoçava e, depois do almoço eu e o irmão (ou irmã) ficávamos brincando no parquinho até dar a hora de voltar para o trabalho. Era muito divertido. E éramos crianças, afinal. Brincar no parquinho era um grande momento do dia.

Naquele mesmo ano (1971) também trabalhei como ajudante numa padaria (Rouxinol) que funcionava no início da Av. Aristiliano Ramos, nas imediações da Rádio Mirador. O trabalho começava cedo, 5 horas da manhã. Tratava-se de ajudar o padeiro a preparar a primeira fornada de pão; lavar toda a cozinha (água jogada pra todo lado) depois secar tudo com pano. Terminada a limpeza era hora de carregar a Kombi da padaria com caixas e pacotes de pão e leite e sair para distribuir nas vendinhas e armazéns dos bairros e do interior. Tudo isso antes das 8 horas da manhã. Daí voltava pra padaria e começava tudo de novo com a preparação de mais pães, doces e cucas que seriam vendidos ao longo do dia. O trabalho era duro, mas, em compensação, podia comer pão à vontade. E eu adorava pão de padaria.

Eu trabalhei também numa Empresa chamada São Jorge que fazia artefatos de madeira (colher de pau, farinheiras, cumbucas, rolo de macarrão e brinquedos como bilboquê e pião). A fábrica ficava na Rua Dom Bosco, no bairro Jardim América. Eu era um ajudante de serviços gerais. Tinha apenas 12 anos e, evidentemente, não poderia trabalhar com tornos e ferramentas metálicas perigosas. Então, só carregava coisas pra cá e pra lá, ajudava a carregar e descarregar caminhões e fazia limpezas.

NENHUM DESSES EMPREGOS pagava um salário fixo nem tinha carteira assinada. Eu queria era ter um emprego sólido como o meu irmão, que trabalhava na Fundição Estrela, onde tinha carteira e batia ponto. Então, de vez em quando eu ia lá e pedia emprego pra eles. A resposta era sempre a mesma: "quando tiver alguma coisa a gente avisa o Padilha" (o Padilha, no caso, era o meu irmão, Carlos Alberto).

Então, num belo dia de março de 1972 o Carlos chegou em casa e deu a boa notícia: "É pra tu ir amanhã lá na Fundição, que tem uma vaga pra ti". Foi uma noite de ansiedade. Finalmente eu iria ter um emprego de verdade, com carteira assinada e salário fixo.

O horário de trabalho era bem pesado: começava às 6h30 da manhã e encerrava às 18h30. Tinha um intervalo de 15 minutos para o café da manhã (às 8h30), um intervalo de uma hora e meia para o almoço (ao meio dia) e outro intervalo de quinze minutos para o café da tarde (às 15h30). Ao todo eram 10 horas de trabalho por dia.

Mas havia os dias de fundida. Ah, os dias de fundida!

A Fundição Estrela (existe até hoje) fabricava artefatos de ferro fundido: panelas, parolos, chapas de fogão à lenha e panelas de freio para indústria automotiva entre outras coisas. Essas peças eram moldadas em caixas de areia fina e, quando todas as caixas estavam prontas era o DIA DE FUNDIDA.

O forno era ligado e a temperatura interna chegava aos 1600 graus centígrados (acima dos 1538ºC necessários para derreter o ferro). O ferro derretido saia do forno para "panelas" metálicas revestidas de barro e daí seguia para fundir cada uma das peças nas respectivas caixas.

O processo era semelhante a esse mostrado AQUI neste vídeo (mas o forno da Fundição Estrela era muito maior)

O dia de fundida era um dia de trabalho intenso. Geralmente começava mais cedo do que o normal (4 ou 5 horas da manhã, dependendo do caso). O calor era infernal. Não existia nenhum tipo de Equipamentos de Proteção Individual. Era um salve-se quem puder! De vez em quando saia um empregado com uma queimadura no pé, nas pernas, na mão... ninguém saia de lá sem uma cicatriz de queimadura.

Os chefes eram rigorosos, mas não maltratavam nem batiam nos empregados. Você pode achar estranho eu dizer isso, mas não era incomum, na época, que os chefes, nas fábricas, batessem em empregados que não obedeciam ou não trabalhavam direito. E isso era considerado normal. Não gostou? Rua!

Mas o Seu Alécio e o seu Lindolfo (os chefes na Fundição Estrela) até que eram bem humanos e apenas exigiam muito empenho no trabalho e, principalmente, na pontualidade.



Muitos anos mais tarde, já engenheiro, com escritório em Rio do Sul (1990), acabei prestando um serviço para a empresa do Seu Alécio (agora empresário na cidade). Foi um reencontro emocionante, pois quando ele entrou em contado com o escritório de Engenharia Elétrica não fazia ideia de quem fosse o engenheiro. Conversamos muito e ele me disse que na época, quando eu era menino, na Fundição Estrela, eu era muito trabalhador e obediente. Essas eram qualidades muito bem avaliadas, na época.



Voltemos à Fundição Estrela. O meu trabalho, junto com o meu irmão Carlos e o Eli Vieira (um grande amigo que eu tenho até hoje) era preparar o forno entre uma fundida e outra. Depois que terminava aquela empreitada de fundir as peças, o forno era desligado e ficava esfriando por umas 24 horas. Não chegava a esfriar completamente, a temperatura baixava para uns 35 ou 40 graus. Então um de nós entrava no forno para fazer o conserto.

O forno era um cilindro metálico vertical com mais ou menos um metro de diâmetro e uns 8 a 10 metros de comprimento. Era revestido, internamente, por tijolos refratários (aqueles brancos, de churrasqueira) que eram afixados com uma argamassa feita com barro.

No final de cada fundida o revestimento interno do forno ficava quase completamente destruído. Então o nosso trabalho era entrar lá, quebrar e retirar, com marreta e talhadeira, os restos de ferro e escória, e depois refazer as paredes com novos tijolos refratários.

Depois de prontas as paredes internas do forno deveriam ser cobertas por uma massa de grafite que era misturada e passada com as mãos (aquela sujeira não saia das mãos e das unhas nem com toda água e sabão do mundo. Era um terror!)

Na Fundição Estrela eu trabalhei por dois anos, (do início de 1972 até o início de 1974). Nos meus 13, 14 anos eu gostava muito de ler. Nas férias que eu passava em Florianópolis, na casa do Tio Nelson e da Tia Márcia, aprendi a gostar de ler jornais. Com o pouco dinheiro que me sobrava, comprava, quase todos os dias, o Jornal de Santa Catarina, recém lançado jornal estadual publicado em Blumenau e que era vendido por ambulantes em Rio do Sul. Começava a ler o jornal pela página de esportes, evidentemente. Mas, como não havia muitas opções de leitura em casa, acabava lendo o jornal inteiro.

E foi assim que eu comecei a perceber que existia um mundo em que as pessoas trabalhavam de roupa limpa. Trabalhavam sentados, em escritórios. E não precisavam trabalhar nos sábados. Era isso o que eu queria pra mim. Então me decidi: ia fazer um curso de datilografia. Afinal, sem datilografia eu não poderia querer trabalhar em um escritório.

Me matriculei na escola de datilografia da Dona Gertrudes Cardoso, ali na Rua Bela Aliança, no final da Rua São João. Mas havia um problema. O último horário da escola era das 19h até 20h e o trabalho na Fundição Estrela ia até 18h30. Não havia tempo para sair do trabalho, ir até em casa, tomar um banho e chegar em tempo para a aula em meia hora.

Fui então conversar com o chefe do escritório, que era quem decidia tudo (nem vou dizer aqui o nome dele) e pedi que ele me permitisse sair meia hora mais cedo para poder fazer o curso.
Para minha surpresa a resposta foi NÃO.

Fiquei muito revoltado! Inconformado. E, como já estava insatisfeito com outras coisas, pedi demissão. Estava decidido a mudar de vida!

Arrumei um emprego de servente de carpinteiro com o Sr. Ibrain, numa reforma lá na rua XV de Novembro. O trabalho começava 7h da manhã e encerrava 17h30. Dava tempo pra fazer o curso de datilografia.

O resto da história eu conto em outro artigo.





PADILHA, Ênio. 2020




Leia também: COMO ME TORNEI UM ESCRITOR
Tudo começou em 1974. Eu tinha 15 anos e trabalhava, finalmente, num escritório.
Eu trabalhava na ORCOJUN — Organizações Coelho Júnior de Empreendimentos Sociais Ltda, um nome pomposo para um pequeno escritório comandado pelo Sr. Coelho, que fazia os trabalhos de detetive particular, agência de empregos e publicação de um almanaque semanal com notícias populares e propaganda de todo tipo.
Pois foi nesse jornalzinho que eu vi, pela primeira vez, uma coisa que eu tinha escrito sendo publicada e lida por milhares de pessoas. Foi uma sensação indescritível.






Sobre o que foi dito na primeira linha deste artigo: começar a trabalhar com 15 ou 16 anos, mantendo a rotina de estudos, ok. Não vejo nenhum problema. Mas uma criança de 11, 12, 14 anos trabalhando NÃO É UMA COISA BOA. É uma crueldade que mata sonhos e interrompe uma fase importante da vida, além de impedir uma transição saudável entre o ser criança e ser adulto.

Muitas informações para a composição deste artigo contaram com a memória de inúmeros amigos que fazem parte do grupo facebook.com/groups/Antigamenteemriodosul.
Agradeço muito o carinho e atenção.




Comentário #1 — 05/04/2020 07:34

COMENTÁRIOS NO FACEBOOK — —

No sábado, dia 04/04/2020 este post foi publicado no grupo facebook.com/groups/Antigamenteemriodosul.
Esses são os comentários registrados:

















Comentário #2 — 05/04/2020 21:28

Farlley — Professor — Brasília

História de um vencedor 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

Comentário #3 — 06/04/2020 22:33

Clara — dentista — BC

Já quero ler a sequência!

RÉPLICA DE ÊNIO PADILHA

Como disse o Shrek (no primeiro filme): "os ogros são como cebolas. Eles têm camadas"
(Haverá novas Notas Autobiográficas, no futuro)

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www.eniopadilha.com.br - website do engenheiro e professor Ênio Padilha - versão 7.00 [2020]

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