REFERÊNCIAS IRRELEVANTES

(Publicado em 21/09/2020)



Virou moda. Toda vez que eu vejo uma live (especialmente no Instagram) o que eu mais escuto é o rapaz ou moça se referindo a alguém e dizendo que a tal pessoa é REFERÊNCIA naquele assunto. Na maioria dos casos é, claramente, um exagero, pra dizer o mínimo. Ou um erro grosseiro, se quisermos chamar a coisa pelo nome.

Não se pode chamar de REFERÊNCIA um indivíduo que não tenha produção consistente de conteúdo.

Então, antes de dizer que uma determinada pessoa é referência nessa ou naquela área é preciso verificar se essa pessoa publicou livros, apresentou cursos ou palestras realmente originais na sua área. Se ela ou ele tem um discurso reconhecido ou se é responsável por por alguma mudança na maneira de pensar das pessoas que lidam com aquele assunto.
A não ser assim essa pessoa não é referência de coisa nenhuma. É apenas mais um papagaiando o que outros já disseram.





Imagem de pasja1000 por Pixabay



Pra mim, por exemplo, serviu como referência, no início da minha carreira, o Manoel Henrique Campos Botelho, do qual eu li praticamente todos os livros. Eu gostava da maneira como ele escrevia e sobretudo da forma como ele abordava os temas de maneira criativa e bem humorada, diferenciando-se dos autores convencionais e quebrando paradigmas. Aliás, eu falei disso, no primeiro capítulo do livro MANUAL DO ENGENHEIRO RECÉM-FORMADO, quando fiz uma contextualização histórica dos manuais de engenharia.

Para uma pessoa ser chamada de referência ele precisa preencher alguns requisitos:
• Tem de ser reconhecidamente inteligente;
• Precisa ser alguém corajoso, porque ele terá de dizer coisas que ninguém está dizendo ou que nunca disseram (o que é diferente de dizer coisas que poucos estão dizendo. Poucos é muito diferente de ninguém);
• Tem de ser didático, porque ele terá de conseguir explicar alguma coisa que a maioria das pessoas nunca havia conseguido entender (e a explicação que essa pessoa apresenta acaba modificando a quantidade de pessoas que consegue entender aquilo);
• Tem de ser, sobretudo, um estudioso. Tem de ter leitura, produção intelectual. Não estou falando apenas de ter escrito artigos ou livros, mas também de manifestações públicas, através de conferências ou cursos que tenham sido capazes de acrescentar alguma coisa àquele campo do conhecimento. O arquiteto Walter Maffei, por exemplo, embora tenha poucas publicações impressas, construiu uma sólida reputação com seus cursos e palestras (especialmente nas décadas de 1990 e 2000).

Em outras palavras, você deve se perguntar: "se esta pessoa (a quem você está chamando de referência) deixasse de existir (assim como o trabalho dela, o canal do YouTube, o perfil no Instagram, o blog, a página no Facebook...) ela faria falta? Haveria alguma lacuna, algum conhecimento, algum desenvolvimento nesta área que não estaria presente?"

Retiradas todas essas questões, talvez a pessoa que você chama de Referência seja um bom professor (o que não é pouco. Merece o reconhecimento e o aplauso). Talvez seja uma pessoa com a capacidade de entender claramente as coisas que já estão postas e com a capacidade de traduzir isso para uma linguagem tradicional, ainda que utilizando argumentos que já tenham sido desenvolvidos por verdadeiras referências que tenham vindo antes dele. Talvez seja um profissional competente e dedicado e que seja um bom exemplo para os seus pares. Isso é muita coisa.

Mas isso não torna essa pessoa uma referência, porque nada do que ele ou ela está dizendo (no Instagram, no YouTube ou seja lá onde for) é, realmente, uma novidade. Não constitui algo novo, um tijolo realmente necessário e que contribui para a construção do edifício do conhecimento naquele campo.

E não importa quantos zilhões de seguidores essa pessoa tenha. Isso não o tornará relevante, a não ser para os anunciantes e patrocinadores.





PADILHA, Ênio. 2020





Leia também: ABRE TEU OLHO, COLEGA ARQUITETO
Mas, se o que você quer é desenvolver-se profissionalmente, contribuir para o desenvolvimento do mercado, valorizar a profissão e ter um crescimento profissional responsável e sustentável... abre teu olho, colega arquiteto!







Comentário #1 — 21/09/2020 08:57

MARCOS VALLIM — Professor e engenheiro — Londrina

Excelente abordagem, Ênio!
Nos tempo das "Lives" o termo "celebridade" foi substituído. Agora todo mundo quer ser "referência", mesmo que não preencha os requisitos.

RÉPLICA DE ÊNIO PADILHA

Isso mesmo, compadre. "referência", "autoridade", "influenciador"... parece que a única coisa que esse pessoal não se preocupa em ser é "relevante".

Comentário #2 — 21/09/2020 10:36

Farlley — Músico — Brasília-DF

Referência é um substantivo instigante.

Na área da música é comum se dizer “minha referência é o Pat Metheny”, “minha referência é o Villa-Lobos”, e cada música expõe ao colega, sempre com orgulho, quem é sua referência. Às vezes, a referência do músico não é um outro músico, mas um estilo musical. No campo da música, dá prazer conversar com outro colega e dizer suas referências (auditivas) e saber as referências do colega. Raramente, as referências dos músicos dependem da fala do ícone, ou de um texto escrito pelo ícone. Na prática, o que interessa é o som que o ícone faz. Quando a conversa se alonga, outras referências (auditivas) começam a fazer parte do rol de cada um. Umas das coisas interessantes numa conversa entre músicos sobre suas respectivas referências, é a explicação dada por cada um sobre o motivo de tê-las adotado. O resultado da conversa é vantajoso porque descobrimos algo sobre o colega e sobre nós mesmos. Outra vantagem é epistemológica: sabemos “o como” sabemos aquilo que chegou ao nosso conhecimento.

Na área arquitetura, vi muitos arquitetos com outro exercício sobre suas referências: apropriam-se de referências visuais. Se o músico constrói seu vocabulário sonoro com a escuta, arquitetos o fazem com os olhos. E não falo aqui de referências do tipo “copia e cola”. Apesar do meio prático proporcionado pelos ouvidos e olhos (material de sobrevivência dos mamíferos), músicos e arquitetos com formação teórica buscam identificar elementos do material teórico naquilo que escutam e vêem, cada qual em seu ofício.

Assim como há músicos e músicos, arquitetos e arquitetos (se é que me faço entender), há referências e referências.

Às vezes, numa conversa com jovens ouço “fulano é referência”, eu sempre (sempre) pergunto: referência para quem? Essa é a pergunta fácil. Depois lhe pergunto: por que é referência?

Não é maldade minha. Eu vejo nos jovens uma sede (e até uma ansiedade) por colher experiências de toda parte. E numa conversa comigo, um ex-jovem com quase sessenta anos, penso que a conversa esta geração que está na infantaria da produção de um novo mundo é uma oportunidade de descobertas. Eu descubro suas ferramentas conceituais, os novos tipos de trabalho e formas de ganhar dinheiro (mesmo que eu já esteja aposentado como estou), e ao fazer perguntas tento ser útil como foram úteis os coroas que me apertaram com perguntas em minha juventude.

Referências andam soltas por aí.

RÉPLICA DE ÊNIO PADILHA

Sensacional, como sempre.

Comentário #3 — 21/09/2020 12:00

Ligia — Engenheira Eletricista — Berlim, Alemanha

Você é a principal REFERÊNCIA em marketing para engenharia e arquitetura há anos. Não conheço ninguém que chegue nem perto! 👏👏👏👏👏

RÉPLICA DE ÊNIO PADILHA

Concordo com você, Lígia. Seria falsa modéstia da minha parte não concordar, dado que eu escrevi os primeiros livros sobre o assunto e fui, durante muitos anos, o único autor a publicar. No entanto, existem outros assuntos aos quais eu me dedico (como estratégia empresarial, tema do meu mestrado) em que eu sou, no máximo, um bom professor da área. Estou muito longe de ser uma REFERÊNCIA. E eu não me incomodo com isso. Ser um professor nessa área (ensinando as coisas que eu aprendi com as minhas referências) eu já considero um bom trabalho.

Comentário #4 — 22/09/2020 22:29

Miguel Bruch Deitos — — Foz do Iguaçu

O Sr. Cid Cidoso é referência em memes brasileiros na internet. Apesar de agora estar aposentado, realizando lives na Twitch. Seu repertório de conteúdo midiático da dos anos 00's - 15's é de extrema valia para o futuro da museologia brasileira.

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