HÁ 42 ANOS

(Publicado em 01/11/2020)



HÁ 42 ANOS... eu era estudante do primeiro ano de Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Santa Catarina. Era um corredor de meio fundo na equipe de atletismo de Florianópolis (uma das cinco melhores equipes do Brasil, naquela época).

No primeiro semestre daquele ano aconteceram duas coisas interessantes: (1) eu conheci um grande amigo (para a vida toda) o Mauro Faccioni Filho, calouro, como eu, mas muito ligado em cultura em geral e, particularmente, literatura e (2) havia uma disciplina, na primeira fase do curso que era Português Instrumental e a professora dessa matéria era a querida Regina Carvalho, um amor de pessoa, lia praticamente um livro por dia e era um poço de conhecimentos.

Somando (1) + (2) e eu já estava no movimento literário da UFSC, conhecia pessoalmente quase todos os autores consagrados de Santa Catarina e estava inscrito no CONCURSO LITERÁRIO DA UFSC daquele ano.

Em novembro saiu o resultado: 1º lugar na categoria Crônicas. Pensa num guri feliz! Contei pra meio mundo. E ainda tinha um diploma e um prêmio em dinheiro.

Usei o dinheiro para comprar os materiais de desenho que eu ainda não tinha e... uma bola de basquete.

Ontem, procurando por um livro antigo na minha biblioteca encontrei o exemplar da REVISTA DISCENTE daquele ano na qual foi publicado o resultado do concurso bem como os textos vencedores. Foi de lá que eu tirei o que vai abaixo.

Tenham paciência com a ingenuidade do texto. Eu era um principiante, ainda meio bobinho. Mas ter ganho aquele prêmio, com certeza foi fundamental para que eu investisse mais tempo e energia nessa coisa de escrever como arte e ofício.



CALOURADA

Calouro é a designação dada ao estudante do primeiro período de curso universitário. Esta definição, encontrada nos dicionários, nem de longe traduz o sentido mais profundo da palavra. O calouro é muito mais que isso. É a própria essência da vida universitária. É o fator renovador das atividades acadêmicas. É a figura do vitorioso. Do soldado que venceu a barreira inimiga e assinou seu atestado de maturidade.

Há, no entanto, um fato que não pode ser deixado de lado: nem todos os calouros são iguais. Cada um traz da sua escola de segundo grau, da sua cidade de origem, do seu cursinho ou de sua família, uma maneira muito própria de ser, que destaca dos demais.

De uma maneira geral, os calouros podem ser separados em sete grandes grupos:

1º grupo – CALOUROS DESCONFIADOS – Um calouro desconfiado é aquele que, no dia do resultado do vestibular, compra um exemplar de cada jornal, para verificar se o seu nome está em todos eles. Não se contentando, ainda telefona para a COPERVE e pede para a moça conferir a lista oficial e informar se ele passou mesmo...

Um membro típico do grupo dos calouros desconfiados nunca acredita numa informação dada por um colega de turma e sempre busca do próprio professor qualquer dado de que necessite para o bom andamento de suas atividades estudantis. Mantém sempre à mão uma lista de telefones dos mestres para conferir com eles as notas das provas, que são publicadas nos murais da universidade.

Verbo preferido: Conferir

2º grupo – CALOUROS DESLIGADOS – Este grupo é formado pelos calouros do tipo “Zezinho”. É o pessoal que chega atrasado para tudo. Atrasado para a matrícula, atrasado para o primeiro dia de aula, atrasado para as provas...

Um calouro desligado, via de regra, é o último da turma a entender aquela confusão de IA (índice de aproveitamento), aquela gororoba de conceitos A, B, C, D, E e I, os problemas do estágio probatório e uma série de outros detalhes, próprios de uma grande universidade. Ele, normalmente, chega ao fim da primeira fase sem saber qual o seu provável índice de aproveitamento. Ou melhor: chega ao fim da primeira fase sem saber que tem um índice de aproveitamento...

Verbo preferido: Deixar

3º grupo – CALOUROS FERRADORES - Muito comuns em cursos da área tecnológica e ciências da saúde, também são chamados de “Caxias”, “Corujas”, “Pesos Pesados”, “Ferrosos” e outras tantas denominações.

Os calouros ferrosos são pálidos (devido à falta de exposição ao sol), usam os tradicionais “fundos de garrafa” quase sempre estão invergando alguma roupa com muitos quilômetros rodados.

São frequentadores assíduos da Biblioteca Central e podem ser reconhecidos à distância, nas dependências do campus, pois estão sempre com uma meia dúzia de espessos livros debaixo do braço. São uns incompreendidos...

Verbo preferido: Estudar (naturalmente!)

4º grupo – CALOUROS POLÍTICOS – É o grupo do “não” (mesmo porque é meio difícil de se imaginar um calouro fazendo a política do “sim”)

São os calouros políticos que dão aquele colorido especial às paredes dos prédios do campus, enchendo-as com aqueles lindos cartazes, contendo verdadeiros crimes contra a língua portuguesa. Eles promovem debates, palestras, congressos, distribuem panfletos, defendem o índio, a Amazônia e a ecologia. As vezes, quando sobra algum tempo, eles também estudam. Mas apenas quando sobra algum tempo...

Verbo preferido: Contestar

5º grupo – CALOUROS ATLETAS – Trata-se de um grupo reduzidíssimo de calouros amantes da cultura física. O PDS é a sua realização e quase sempre são destaques nas atividades esportivas.

Os calouros atletas podem ser encontrados em qualquer curso de qualquer área. No curso de Educação Física, porém, a incidência e muito pequena, fato curioso e de difícil explicação (?!).

Verbo preferido: Competir

6º grupo – CALOUROS ARTISTAS – São também membros de uma minoria. São os pintores, os cantores, os compositores, os poetas, os atores e teatrólogos.

Na maioria das vezes suas aparições são feitas em grupo.

Não possuem tipo físico definido e passam despercebidos pelos bares e corredores. São boas cabeças!

Verbo preferido: Viver

7º grupo – CALOUROS FEIJÃO COM ARROZ – São os outros. Os que não se incluem em nenhum dos grupos acima.

Como vimos, a cada semestre o campus universitário recebe uma legião de novos estudantes que não são simples carregadores de livros e cadernos. São membros de uma sociedade e todos têm no fundo do coração a consciência da importância de sua atuação como calouro, representante de uma nova turma, de uma nova geração de “gente”.

COMUNICAÇÃO

Desci do ônibus e me dirigi às presas para a saída do terminal. Pois estava um pouco atrasado.

Ao passar por uma daquelas placas indicadoras de linhas, uma coisa me chamou a atenção. Era um bilhete escrito com letra muito bonita e estava afixado com durex, num ponto bem visível da dita placa:

“Se você ler este bilhete vai saber que eu estive procurando por você, pois eu te amo e não consigo me acostumar com a sua ausência. Benn”.

Achei estranho que alguém usasse desse meio para mandar um recado a alguma outra pessoa. A minha pressa, no entanto, falou mais alto e eu segui meu caminho, sem dar muita importância ao assunto.

No fim da tarde, ao voltar ao terminal, notei que o bilhete não estava mais lá. Em seu lugar havia um outro, feito com a letra bem mais bonita:

“Não precisa me procurar mais. Já estou cheia de você. Não sei como ainda tem coragem de dizer que me ama, depois do que fez. Elle”.

Achei graça da resposta, sem pensar no sofrimento do pobre rapaz. Eu apenas estava vendo o lado pitoresco da briga.

No dia seguinte, novo bilhete:

“Você não pode duvidar de mim. Houve apenas um malentendido. Não é nada do que você está pensando. Eu juro que estou sofrendo muito sem você. Benn”.

Nesse ponto eu comecei a me interessar, realmente, pela estória. Ao fim da tarde a curiosidade me fazia cócegas e eu contava os minutos, ansioso para chegar no terminal e ver a resposta da moça.

A resposta estava lá:

“Você já teve a sua chance de esclarecer tudo. É uma pena que não tenha aproveitado. Elle”.

No outro dia fui direto à placa, em busca do novo ataque do Benn.

“Olha, você precisa me ouvir. Dá uma nova chance, por favor. Benn”.

A resposta:

“Você não merece. Elle”.

No dia seguinte, Benn resolveu dar o bote final:

“Espero você na Sorveteria do Charles, às oito da noite, tá OK? Benn”.

Assim já é demais, pensei, o cara tem mesmo muita coragem... Eu quis tentar adivinhar o catatau de impropérios que viriam como resposta, mas não consegui. Ao fim da tarde a resposta estava lá:

“Tá. Elle”.

Mas isso é o fim da picada, disse eu aos meus botões. Onde já se viu uma coisa dessas! Será que essa Elle não tem palavra ou será que não é capaz de suportar a saudade por mais de quatro dias?!

O pior era que estava sendo, decididamente, posto para escanteio, sem saber o fim da novela.

De súbito, ocorreu-me uma ideia. Porém, desisti dela imediatamente, pois não seria direito xeretear a vida alheia. Não me cabia, por razão nenhuma, o direito de ir adiante na minha intromissão. Já havia feito muito mal em ler a correspondência que não me fora endereçada. Não. Ir à Sorveteria do Charles, às oito, seria muito excesso de curiosidade. Bem melhor se eu arrumasse outra coisa para me distrair...

... Dez para as oito, lá estava eu, na Sorveteria do Charles, discretamente, observando a todos com muita atenção, sem, no entanto, descobrir o Benn entre os presentes.

Num momento aconteceu: uma voz tirou-me da concentração.

- Elle!!!

A voz saíra do senhor de idade, que estava sentando a uma mesa em frente à minha e dirigia-se à senhora que entrava na sorveteria naquele momento. Ela acenou com a mão e dirigiu-se à mesa dele, com naturalidade.

Não podia ser! Aqueles não eram os personagens que eu imaginara para a estória que eu acompanhei naquela semana!

Ambos aparentavam mais de cinquenta anos, aparentemente bem vividos em seus rostos não havia traços de mágoa ou sofrimento. Pareciam mais a dois colegiais gazeando aula...

Fiquei por algum tempo observando os dois. Eles conversaram um pouco, tomaram um sorvete, pagaram a conta e saíram, de mãos dadas, como se nada tivesse acontecido.

Por fim, chamei o Charles e perguntei se conhecia o casal.

- Conhecer eu não conheço. Só sei que vêm aqui de vez em quando. Um chega primeiro, depois o outro, tomam um sorvete e saem juntos...





PADILHA, Ênio. 2020





Leia também: COMO ME TORNEI UM ESCRITOR
Tudo começou em 1974. Eu tinha 15 anos e trabalhava, finalmente, num escritório (num outro artigo eu conto como foi que chegamos a isso, depois de três anos trabalhando em madeireira, fundição de ferro, posto de gasolina, fábrica de bala, marcenaria e como servente de carpinteiro... )


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