AMARELOU, SIM SENHOR.

(Publicado em 29/09/2000)



Depois desse fracasso retumbante da delegação brasileira em Sidney, parece não haver dúvidas: sobrou para o Shinyashiki. Aliás, não só para ele. Sobrou para todo mundo que ganha dinheiro fácil explorando esse verdadeiro flagelo nacional que é a onda de palestras e livros de motivação pessoal e auto ajuda.

O desempenho pífio da delegação brasileira em Sydney serve, ao menos, para demonstrar que no esporte, assim como na vida, não existe mágica, nem milagres. E que medalhas olímpicas não se conquistam apenas com a força do pensamento positivo.

O amigo leitor me responda, por favor. O que é mais difícil: caminhar, literalmente, sobre brasas ou vencer um adversário que já o enfrentou muitas vezes e perdeu sempre.

Você, com certeza, já sabe do que estamos falando: na primeira semana de agosto, pouco antes de a delegação brasileira iniciar viagem para a Austrália, Roberto Shinyashiki (um consagrado autor brasileiro de livros de auto-ajuda e motivação pessoal) deu uma palestra para os atletas, por sugestão do COB. O tema foi “Transformando o Sonho em Medalhas”. No final, ele pediu que os atletas andassem sobre brasas. E os atletas andaram sobre brasas. O resto da história você conhece bem. Deu na televisão, nos jornais e na Internet:

Futebol Masculino, Tênis, Volei de praia (masculino e feminino), Volei de quadra (masculino e feminino) e Futebol Feminino, além de alguns “destaques” individuais na natação e no atletismo foram eliminados dos jogos ou obtiveram resultados muito abaixo do esperado, enfrentando adversários historicamente inferiores. Acabaram mostrando que, quando o assunto é Jogos Olímpicos” a conversa é muito mais séria. Não adianta ter uma preparação ineficiente, dar aos atletas uma atenção inadequada durante quatro anos e depois querer resolver tudo com uma pirotecnia de motivação pessoal.

O Doutor Shinyashiki deu entrevistas afirmando que “o Brasil não amarelou”. E analisou cada caso, dando explicações sobre os “verdadeiros” motivos das derrotas. Disse, por exemplo, que os atletas brasileiros se superaram e que cada um deles conquistou sua própria vitória pessoal.

Me desculpe, doutor, mas eu não concordo. Se um atleta está no grupo de elite da sua modalidade e é cotado para ganhar uma medalha (caso, por exemplo, dos três maratonistas) eu não acredito que eles considerem o desempenho deles (duas desistências e um 75o lugar) como uma superação ou uma vitória pessoal. Nem eles, nem seus técnicos, nem os jornalistas, nem ninguém.

Sobre o volei masculino, por exemplo, ele disse que “a explicação é simples: hoje, todos os times têm estatísticas sobre os adversários. Por causa disso é cada vez mais difícil jogar. Se você não tiver jogo sobrando, vai ter problemas. É triste constatar isso, mas, do ponto de vista estratégico, a Argentina esteve perfeita. Eles mapearam todas as nossas possibilidades de ataque e se prepararam.”

Ah, bom. Quer dizer então que o negócio não é “acreditar no improvável”? (tese de Shinyashiki que justificou a ideia das brasas na palestra de agosto). Quer dizer, então, que continua valendo a velha tese de que o melhor mesmo é estar preparado (bem preparado) para o “provável”?

Bom, se é assim, continua valendo a teoria de que “a melhor preparação psicológica que um atleta pode receber são as condições físicas (alimentação, moradia digna, acompanhamento médico e odontológico) para enfrentar o treinamento. Muito treinamento”. A certeza de estar bem preparado para um desafio é muito mais eficiente do que qualquer recurso mágico transcendental.

As palestras e os livros de auto-ajuda e motivação pessoal já causaram muitos danos à muita gente. As pessoas não percebem, porque estão motivadas para encarar a própria derrota como uma vitória pessoal.

Está na hora de “cairmos na realidade”: os nossos problemas precisam ser identificados, enfrentados e superados (e não apenas vistos com outros olhos, como se, na verdade, não fossem problemas). Não devemos ficar enganando a nós mesmos com frases de efeito e mentiras convincentes.

Se eu sou insignificante, não adianta ir pra frente do espelho e ficar dizendo “eu sou especial!!!”

Eu tenho é que perceber a realidade e aceitar os sacrifícios que são necessários para mudar essa situação.

Todas as conquistas, no esporte e na vida, são resultados de trabalho, organização, disciplina e sacrifícios. Frases de efeito não funcionam quando o jogo é pra valer.

Eu fui atleta (atletismo) durante 10 anos. Acompanho os Jogos Olímpicos pela TV e pelos jornais desde 1972 (Munique). Sou apaixonado pelos jogos e sempre fui o primeiro a defender os atletas contra as cobranças injustas que a imprensa e a torcida brasileira costumam fazer.

Neste ano, porém, junto-me ao coro dos descontentes. É duro ver os atletas brasileiros com um retrospecto altamente positivo, competindo contra adversários reconhecidamente inferiores e perdendo as disputas decisivas por puro “amarelão”.

É preciso que se faça alguma coisa. Precisamos nos preparar direito. E eu digo isto incluindo todos nós, não apenas os atletas.

A torcida, os jornalistas, os dirigentes todos nós precisamos aprender a conviver com o favoritismo. Precisamos aceitar a ideia de que podemos ser melhor (de verdade) em muitas coisas. Precisamos parar com essa bobagem de supervalorizar as conquistas casuais, as vitórias inesperadas, o campeão que surpreendeu a todos. O atleta que vence uma grande competição quando ninguém esperava nada dele é, potencialmente, um atleta que vai “amarelar” quando estiver na condição de favorito absoluto.

Precisamos aceitar sem ressalvas a aparente arrogância dos atletas auto suficientes, que se garantem e que (isto é importante) vencem, sempre que são favoritos. Joaquim Cruz, Nelson Piquet, Michael Johnson, Romário e tantos outros já foram discriminados pela imprensa e pela torcida apenas por que apresentam esta importantíssima característica: a arrogância.

Mas se você prefere aqueles atletas bonzinhos, sorridentes, “humildes”, que e nunca dizem “eu sou o melhor”, contente-se com medalhas de “honra ao mérito” e compartilhe com eles as dores das derrotas, quando o desafio for realmente grande, como a disputa de uma medalha olímpica.





PADILHA, Ênio. 2000





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