VENDE-SE PROJETOS (PADRÃO) DE ARQUITETURA

(Publicado em 16/01/2015)



Há algumas semanas fui contratado para fazer uma palestra num evento de arquitetos. Na verdade, o seminário era organizado e promovido pelo CAU local. Eu faria a segunda palestra. Antes de mim seria apresentada uma palestra sobre Empreendedorismo e Inovação na Arquitetura, por uma palestrante que representava o SEBRAE.





Imagem: Ênio Padilha com gratispng.com



Como sempre, nesses casos, cheguei cedo e pude ver a palestra inicial. Nada de mais. Apenas aquele bla-bla-blá de quem pesquisou no google e os inevitáveis videozinhos manjados do YouTube (tenho horror a isso!).

Para “inovar” na sua palestra, a apresentadora trouxe dois exemplos de empreendedorismo: uma jovem cantora e compositora que toca em bares e festas (desculpem, estou até agora sem entender o que tem de empreendedorismo ou inovação nisso!) e um rapaz que tem um produto “sensacional”: ele constrói casas com uma tecnologia “nova”, tipo steel frame (já falamos disso AQUI).
Mas o mais interessante, no caso daquele jovem era o modelo de negócio: ele tinha criado um site na internet onde os clientes poderiam fazer o negócio diretamente com a empresa, escolhendo o projeto do seu interesse…

ôôôpaaa! Acendeu uma luz amarela! Dei uma geral na platéia e vi que outros colegas se remexiam nas cadeiras, alguns cutucavam o colega do lado e comentavam alguma coisa. Um certo mal estar estava se instalando.

Pra quem não é do ramo eu explico: existem poucas coisas capazes de aborrecer mais um arquiteto do que alguém que oferece “projeto padrão” que pode ser escolhido num catálogo. E eles têm razão. Onde já se viu? Um projeto não é apenas uma planta de construção. Existem muitas coisas importantes que precisam ser consideradas antes de riscar o primeiro traço (seja no papel ou na tela de um computador). É preciso conhecer o terreno, a orientação em relação ao sol, as condições de vizinhança, etc, etc e muitos outros etecéteras…

Um projeto de arquitetura não é um produto de prateleira. É um serviço muito personalizado e merece um cuidado que os arquitetos aprendem a ter nos muitos anos de estudo e de experiência no exercício da profissão.

A palestrante, que não tinha se dado conta disso ao preparar a sua apresentação (porque não sabia nada a respeito do seu público e apenas queria vender a sua palestra guarda-chuva) também não percebeu a inquietação e os olhares de reprovação da plateia. E continuou descrevendo e elogiando o trabalho do seu “empreendedor/inovador exemplar”. E, para fechar com chave de ouro, vem a informação que ela deu com um entusiasmo de quem anunciava uma grande notícia: “E vou dizer mais uma coisa pra vocês, que é o mais importante” disse ela apontando para o rapaz, “ele não é nem arquiteto nem engenheiro. E faz tudo sozinho! Não é fantástico?”

Não. Não era!

Alguns se levantaram e foram embora. O mal estar foi generalizado. Os organizadores não sabiam o que fazer. Um deles sentou-se ao lado do tal empreendedor/inovador e perguntou se ele, de fato não tinha nenhuma formação de engenharia nem de arquitetura. Não tinha. Perguntou então se havia um responsável técnico na empresa que fazia esse tipo de serviço. Não. Não tinha. Mas já estava sendo providenciado. Tinha uma pessoa que iria assinar como responsável pelos projetos (mesmo sem tomar parte do trabalho).

Deus do céu!

Bom, quando chegou a hora da minha palestra nem sei se as pessoas estavam atentas, tamanha foi a perplexidade produzida pelos fatos anteriores. Mais tarde os organizadores do evento disseram que (obviamente) iriam tomar as providências, não só pela gravidade das transgressões confessadas como também pelo terror que foi uma palestra organizada e promovida pelo CAU fazer apologia a um dos comportamentos mais repudiados e execrados pelo corpo dos profissionais. Os organizadores disseram estar chocados e sentindo-se enganados e traídos pela palestrante que demonstrou não saber nada sobre o universo profissional da sua plateia ao cometer um erro tão grosseiro.

Pra mim, além do fato chocante e pitoresco, fica uma constatação importante: é muito maior do que a gente pensa o número de pessoas que considera NORMAL e ACEITÁVEL que (1) projetos de arquitetura sejam vendidos como produtos pré fabricados e (2) que um profissional que não tem nenhuma relação com o trabalho possa simplesmente “assinar a planta” dando legalidade a um trabalho muitas vezes lesivo ao cliente.

Essa questão (a ignorância da sociedade sobre o valor do trabalho do arquiteto) é uma questão que precisa ser atacada com urgência pelo CAU, pelo IAB, pela AsBea, pelos sindicatos e por todos os profissionais no campo.





PADILHA, Ênio. 2015

Comentário #1 — 16/01/2015 09:05

Wilian dos Santos Morais — Engenheiro Civil — Rio de Janeiro

Muito bom o texto Ênio Padilha, mas gostaria de fazer uma colocações. Trabalho com projeto estrutural de estruturas pré-fabricadas, apesar de se "acreditarem" que esse tipo de estruturas criam-se projetos padrões na arquitetura, a meu ver essa visão está equivocada, pois a pré-fabricação pode oferecer ao cliente um trabalho personalizado e com ótimo acabamento. Bastando apenas a arquitetura está disposta a inovar nesse sentido.

RÉPLICA DE ÊNIO PADILHA

Muito boa a sua observação, Wilian.
Eu conheço, inclusive arquitetos e engenheiros que são especialistas em projetos (personalizados, evidentemente) para construções pré fabricadas.

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