
LONGA VIDA AO CALABOUÇO
(Publicado em 05/01/2018)

Imagem: Mauro Faccioni
Recebi a fotografia pelo WhatsApp. Quem mandou foi o Mauro Faccioni. Ele nunca morou lá, mas sabia o impacto que a imagem causaria no meu coração.
A legenda era significativa: "Últimos dias do Calabouço!" Deu um nó na garganta.
Morei muitos anos no calabouço, quando fazia faculdade (Engenharia Elétrica, UFSC, início dos anos 1980). Era um casarão lúgubre, uma sala, um enorme corredor, quatro quartos, uma cozinha e um banheiro. Não entrava sol em três dos quartos. O último quarto era chamado de Maracanã, porque era um quarto duplo, e pegava um pouquinho de sol. As paredes viviam úmidas,
Os residentes permanentes eram três: o João da Silva Dias, o Marcos Vallim e eu (todos da Engenharia Elétrica) moramos lá por quase três anos. Mas, nesse mesmo tempo, outras pessoas moraram lá durante períodos mais curtos. Antônio Salvador (foi presidente do Crea-CE), o Ramires, um engenheiro Boliviano que fazia mestrado na UFSC ("solo enseñan la mierda en lá universidad!"), o Gilberto Drummond (que hoje mora em Vitória-ES), o meu irmão, Élcio, o irmão do João, Júlio, os três garotos do oeste que nós, maldosamente, apelidamos de Cícero, Prático e Heitor... enfim... muitas memórias. E teve ainda o Heráclito, um rato (camundongo) que surgiu num determinado momento e nos atormentou por alguns dias. Foi uma caçada que exigiu muita determinação e inteligência de nossa parte. No fim o pobre Heráclito caiu nas mãos do João Dias... e aí, já viu: não havia clemência!
O João ficava no primeiro quarto. O Marcos no segundo. Eu morava no terceiro. No maracanã ficavam os itinerantes. Geralmente moravam por alguns meses e depois iam embora. A república era democrática. Não tinha stress por conta do que havia na geladeira. Tinha uma TV na sala (preto e branco, 20 polegadas) onde a gente acompanhava "a vida lá fora". Lembro de todos reunidos na sala acompanhando a Guerra das Malvinas, a Copa de 1982 e a mini-série da Globo Lampião e Maria Bonita, com o Nelson Xavier e a Tânia Alves.
Havia muito pão com chá. Havia muita resenha. Havia muito silêncio para estudos intermináveis nos fins de semana... E havia as escalas de limpeza do banheiro e da cozinha, trabalho que a gente fazia sempre resmungando de brincadeira "onde já se viu: um homem na minha posição, quase um engenheiro, ainda tendo de limpar banheiro dos outros..."
E agora o Calabouço está sendo demolido. Dará lugar a um grande edifício. É claro que não sou contra, mas dá vontade de pedir pra fazerem isso com carinho, com cuidado, com respeito. Como disse o Marcos (quando eu contei pra ele, também pelo Whatsapp) "é uma sensação muito estranha mesmo. Parte importante da nossa vida está ligado ao Calabouço. Lembranças muito boas de situações bem ruins. Ao demolirem aquele lugar e construírem algo novo vai parecer que nunca existiu e, portanto, todas as nossas lembranças ficarão parecendo alucinações"
Longa vida ao Calabouço. Agora apenas nas nossas lembranças.

PADILHA, Ênio. 2018

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