OS ROTEIRISTAS PIRAM

(Publicado em 30/03/2020)



Duas variáveis importantes foram introduzidas pela Covid19 como ingredientes dramáticos em filmes futuros sobre pandemias: (1) o tempo entre o contágio e a manifestação dos primeiros sintomas da doença e (2) o fato de haver um grupo de risco perfeitamente definido (e não incluir um provável herói do filme entre eles).

A velocidade do contágio, a letalidade e as consequências terríveis para os infectados, para os profissionais da saúde e para a população em geral sempre estiveram presentes nos filmes. Mas o que está pegando agora, nessa pandemia da vida real, é que as pessoas (até mesmo gente esclarecida e que passou por faculdades onde se ensina lógica matemática, estatística e probabilidade) estão tendo dificuldade para entender que, ao mesmo tempo em que estamos lutando contra um vírus, estamos lutando contra o tempo e para salvar a vida dos outros.





Imagem: OitoNoveTrês



Assim como o 11 de setembro mudou pra sempre a lógica dos filmes sobre terrorismo fundamentalista religioso, também esta pandemia da Covid19 terá consequências sobre as produções cinematográficas do gênero, no futuro.

Uma coisa que nenhum filme sobre pandemias já abordou no passado (não que eu saiba. Se alguém souber, me corrija, por favor) é o fato de que a combinação da rapidez no contágio com a demora para manifestar os sintomas e a gravidade seletiva da doença num determinado grupo ser muito maior cria problemas de interpretação da situação e dilemas morais para os quais, aparentemente, a sociedade capitalista nunca esteve preparada para enfrentar.

No final de fevereiro de 2020 o prefeito de Milão, na Itália, embarcou de cabeça na campanha MILÃO NÃO PARA, que estimulou os moradores da cidade a continuar as atividades econômicas e sociais, mesmo sob alerta do risco de propagação do novo coronavírus (que já estava ativo na região havia um mês). O que aconteceu depois é história. Não preciso dar detalhes aqui.

Mas, pelo mundo todo, outros dirigentes nacionais e líderes empresariais continuaram a cometer o mesmo erro como se estivessem vendo outro filme.

O grande vilão desse nosso filme é justamente o fato de que o inimigo está oculto numa equação cuja variável mais importante é o tempo decorrido entre a pessoa se infectar e manifestar os primeiros sintomas, que varia entre 5 e até 21 dias (nos filmes, geralmente a manifestação é imediata).

Esta demora para manifestação da doença cria uma cegueira para a sociedade em relação ao tamanho do problema e, quando o monstro aparece já está num tamanho tão grande que torna difícil (quase impossível) enfrentar e vencer.

Além disso, temos a questão adicional de que a maioria dos infectados não desenvolve a doença ou desenvolve sintomas simples: "uma gripezinha", como dizem os incautos. O problema de saúde real, claramente, atinge os idosos e pessoas com doenças pré-existentes. Esses correm risco real de vida ou de sequelas graves.

Daí decorre o dilema moral importante (e que nunca foi explorado em nenhum filme): os beneficiários dos sacrifícios que estão sendo pedidos aos adultos jovens e saudáveis são justamente os idosos, portadores de doenças e outros grupos improdutivos. Muita gente cujos pais e avós estão seguros em quarentenas razoavelmente confortáveis não tem a mesma disposição para fazer sacrifícios adicionais por desconhecidos.

Além do mais, tudo indica, de acordo com o senso comum, que a situação está sob controle. O problema é que, se o diabo mora nos detalhes, o demônio se alimenta do senso comum. Não tem perigo de dar certo.





PADILHA, Ênio. 2020





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