A BUSCA INSANA POR UM CULPADO
(Este artigo foi publicado em 27/01/2012)
Toda vez que acontece alguma tragédia de proporções jornalísticas a imprensa segue o mesmo e simplório roteiro:
No primeiro momento, ocupa-se da exploração das angústias e incertezas. Repórteres, cinegrafistas e redatores relatam apenas o que parece óbvio (um avião caiu em tal lugar... um prédio desabou em tal cidade... um grande deslizamento ocorreu em tal ponto da cidade... engavetamento de muitos veículos na Rodovia Tal...) sem informações precisas.
Nessa fase, todas as especulações são válidas e, em alguns casos, são passadas como se fossem informações precisas e rigorosamente apuradas. No caso do desmoronamento dos edifícios no Rio de Janeiro (quarta-feira, 25/01/2012) nas primeiras horas podia-se ouvir (ou ler nos portais de notícia da internet)... que era um edifício (ou dois), com 8 andares, 18 andares, 22 andares... que havia caído sobre o Theatro Municipal... que o próprio Theatro Municipal havia caído... que havia centenas de feridos...
Nesse primeiro momento a prioridade são os dramas humanos imediatos. É hora de entrevistar os sobreviventes e os parentes das vítimas. Entrevistados emocionados e histéricos têm preferência sobre os calmos e comedidos. O desespero é supervalorizado.
Esta fase segue por quatro ou cinco horas, enquanto a audiência quer saber apenas \"o que está acontecendo\". O evento está ainda na fase do \"o quê\" do \"quando\" e do \"onde\";
Na segunda fase começa a especulação sobre o que causou a tragédia e como aconteceu (Falhou um dos motores... Houve um vazamento de gás... A estrutura rompeu...) As informações sobre \"o que\", \"onde\" e \"quando\" aconteceu começam a ficar claras e a busca pelo \"como\" e do \"por que\" entra em cena.
Os especialistas começam a chegar nas redações e estúdios; os designers são acionados para produzir infográficos; os arquivos são revirados em busca de fotos antigas do local do desastre.
Testemunhas começam a ser ouvidas. Autoridades começam a dar declarações (geralmente ensaboadas e tergiversantes); A prioridade agora são as informações \"oficiais\" (do proprietário, da prefeitura, do governo do estado, do Crea, do Ministério correspondente...)
A terceira fase, que começa de 12 a 15 horas depois do desastre, é a mais cruel e, geralmente, a mais estúpida: é a fase em que a mídia assume a responsabilidade de apresentar à opinião pública um CULPADO. E esse culpado precisa ser uma pessoa. E essa pessoa precisa estar viva, para que possa ser acusada e punida.
Por isso, num acidente aéreo em que o piloto tenha morrido é tão raro que ele seja imediatamente responsabilizado - ainda que a falha humana seja uma das mais frequentes causas de acidentes aéreos. Isto não teria utilidade para a mídia.
É aí que a imprensa começa a atrapalhar mais do que ajudar.
A pré-suposição de que um acidente grave tenha um único culpado, por si só, já é pouco inteligente. Um acidente aéreo, a queda de um edifício, o naufrágio de um navio ou qualquer outra grande tragédia, geralmente é resultado da soma de um grande número de fatores. Um único erro dificilmente faria um avião cair ou um prédio desabar. Portanto, apontar um único culpado nos afasta do que é mais importante: descobrir as verdadeiras causas do problema e enfrentar a sua correção.
No caso de acidentes aéreos, por exemplo, desde a Convenção de Chicago de 1944, há um consenso mundial sobre a necessidade de estabelecer um sigilo sobre a investigação, com o objetivo de formar um ambiente onde a cultura seja a da prevenção e não a da repressão. (para mais detalhes, leia o artigo A CONFIDENCIALIDADE NO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES AERONÁUTICOS À LUZ DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO, de Fábio de Freitas Pedro.
De que adianta punir uma pessoa e não corrigir as causas, condenando dezenas, centenas ou milhares de pessoas a enfrentar o mesmo problema no futuro. O objetivo não é protejer os culpados mas sim protejer o interesse público (mas, vai dizer isso para um jornalista cheio de sangue nos olhos.)
Num artigo publicado no Blog Para Entender Direito temos uma observação muito importante sobre o papel da imprensa nessa fase da cobertura jornalística. O autor, de forma precisa, afirma que \"tanto a imprensa quanto a população podem - e devem - vigiar o trabalho de investigação do Estado. E devem exigir que sejam eficientes e expedientes. São direitos nossos. O problema está no tipo de pergunta que queremos que sejam respondidas durante a investigação. Devemos perguntar não de quem é a culpa (porque é para isso que há uma investigação), mas como é que as razões do acidente serão apuradas, em que estágio estão tais investigações, que passos já foram tomados e quais os próximos passos. Perguntar de quem é a culpa só faz sentido depois que houve uma investigação.\"
O problema é que esse tipo de cobertura não interessa ao jornalista que, travestido de paladino da justiça e representante do povo, não está interessado em educar o leitor, ouvinte ou telespectador. Ele quer é faturar audiência. E isso ele conseguirá com maior facilidade atirando um culpado para o linchamento público.
Mesmo que o acusado nem seja o verdadeiro (ou único) culpado. E mesmo que isso não contribua para evitar outros desastres semelhantes no futuro.
É triste.
ÊNIO PADILHA
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